Shingeki no Kyojin, Hadashi no Gen e Studio Ghibli – Embate Político na Indústria Cultural

Diante das reações ao último post sobre o discurso da direita em Shingeki no Kyojin, percebo que, para que aquele texto faça sentido, é preciso a) que o leitor acredite que o embate político entre direita e esquerda é travado por meio da indústria dos animes e mangas; b) que o leitor entenda o fato daquela análise se inserir em um momento muito específico da política japonesa . Caso esse pressuposto não exista, os comentários que teci parecerão de fato apenas teorias sem sentido ou generalidades.

Por exemplo, alguém poderia dizer que aquelas analogias se aplicam a outras obras. Eu mesmo pensei em DBZ, com a questão das constantes ameaças de invasões de “fora”, da necessidade de se fortalecer, mas ali, além do discurso ser absolutamente diferente, o momento na política e na indústria cultural era outro.

Portanto, para que a premissa de que existe discurso político nos mangas/animes seja aceita, vou abordar três casos desse ano que mostram como um determinado momento político pode trazer a tona esses contornos de embate entre esquerda e direita, que podem estar explícitos ou implícitos nessas obras por meio da pessoa de seus autores.

* Aqui falo de esquerda e direita não de forma genérica, mas especificamente no contexto de direita japonesa, entendida como nacionalista, militarista, revisionista e xenófoba, e de esquerda especialmente no aspecto pacifista e cosmopolita.

I – Breve Background Político

jimintou

Em termos bem resumidos do background político, é importante que os leitores desses comentários tenham em mente o seguinte cenário. O Jimintou (ou LDP) é um partido da direita japonesa, com alas mais moderadas e mais conservadoras. Permaneceu no poder de forma quase ininterrupta desde 1955 (com apenas um ano de intervalo em 1993-1994). Desde a década de 50 o partido advoga contra a atual Constituição do Japão, que aboliu o exército japonês, retirou todos os poderes do imperador (inclusive o caráter divino) e apresentou conceitos de bem estar social e direitos humanos em lugar da ordem pública. São justamente esses os pontos que sempre quiseram mudar por meio de emenda constitucional, estabelecendo novamente o exército, restaurando alguns poderes imperiais, e dando novos contornos de um estado focado mais em ordem do que em bem-estar social.

Em 2009 o partido sofreu a maior derrota até então em eleições, retomando, no entanto, o poder no final 2012, com uma vitória muito expressiva, e com o retorno de Shinzo Abe, representante de uma ala mais conservadora, nacionalista e revisionista, que defende o papel do Japão na Segunda Guerra Mundial (já cogitou inclusive revogar os poucos pedidos de desculpas públicos feitos pelo país) e uma postura diplomática de agressividade defensiva, como se o Japão estivesse prestes a ser atacado por todos os lados, adotando, portanto, um discurso duro e as vezes alarmista.

O retorno ao poder dessa ala política se deve muito mais às propostas econômicas do que ideológicas, e diante da alienação dos japoneses com relação a política, pode-se dizer que seu eleitorado não é majoritariamente dessa direita tão conservadora. Mas é inegável que em tempos de crise, esses valores nacionalistas, essa postura defensiva se torna muito mais comum, mesmo sem um contorno político definido, e esse discurso passa a ser adotado ou defendido por grande parte população consciente ou inconscientemente. Nesse cenário surgiram alguns fatos preocupantes:

1) Hadashi no Gen

gen

Hadashi no Gen, ou Gen Pés Descalços, é um manga símbolo do pacifismo, um retrato teoricamente fiel do horror das bombas atômicas, que adota uma postura especialmente crítica contra o governo japonês da época, contra o esforço de guerra e contra o imperador. Publicado inicialmente na Weekly Shonen Jump entre 1973 e 1975, foi cancelado e posteriormente passou pela Revista Shimin e depois passou 4 anos na Bunka Hyoron, uma revista ligada ao partido comunista.

Por conta dessa vinculação explícita com a esquerda, e por declarações polêmicas contra o imperador e contra o exército e governo japonês, a obra sempre enfrentou alguma resistência da direita, o que não impediu de ser leitura presente em todas as escolas japonesas, e a exibição do filme é quase um ritual todos os anos em muitas instituições de ensino

Ocorre que, com a morte do autor Keiji Nakazawa em Dezembro de 2012, e com o retorno da direita conservadora ao poder, a obra tem se tornado alvo de casos absurdos de censura. Primeiramente, foi proibida e retirada das bibliotecas e escolas da cidade de Matsue, não só pela sua abordagem gráfica e realista, mas por ser considerado pelos conservadores e revisionistas japoneses como um retrato incorreto da participação do Japão na Guerra (aqui a crítica se foca especialmente nos casos de castigos corporais retratados, na opressão do exército contra civis e etc). Isso tudo partiu de um suposto lobby do Zaitokukai, uma associação de extrema direita contra direito dos estrangeiros (sim, isso existe, segue o link: http://en.wikipedia.org/wiki/Zaitokukai).

Uma petição online com 21.395 assinaturas foi apresentada no comitê educacional da escola e reverteu a situação em 26 de agosto de 2013

E a polêmica com “Gen” continuou com um pedido de nível nacional para retirada do mangá como material de ensino nas escolas:

http://sankei.jp.msn.com/life/news/130911/edc13091115490004-n1.htm

Para quem não lê ainda em nihongo, segue a página da wikipedia em inglês sobre a associação que fez o pedido, o que vai dar uma noção bem clara da agenda política por trás disso tudo.

http://en.wikipedia.org/wiki/Japanese_Society_for_History_Textbook_Reform

2) Ghibli Studio

The-Wind-Rises

Por trás da beleza dos animes Ghibli e da qualidade excelente dos roteiros,  existe um verdadeiro engajamento na transmissão de alguns ideais nessas obras. Especialmente nos filmes dirigidos por Hayao Miyazaki temos as temáticas mais claras como a defesa do meio ambiente, bem como críticas mais sutis (ou não) contra o capitalismo, consumismo e etc. Além disso, Miyazaki é declaradamente socialista e foi líder sindical na década de 60. Recentemente (julho de 2013) ele e outros diretores como Isao Takahata publicaram artigos abertamente contrários ao Primeiro Ministro Abe e às tentativas de militarização do país (ainda escreverei um post com review desses artigos).

Some-se a isso o lançamento de seu novo filme, Kaze Tachinu, que também trata de questões polêmicas sobre a guerra . Em meio a elogios, críticas e acusações de traidor, Miyazaki anunciou sua aposentadoria. Claro que devemos levar em conta principalmente sua idade , o trabalho extenuante que é dirigir um anime e etc, mas acredito que o desgaste com a política também existe, nem que seja de consciência. Em uma época em que os valores contras os quais luta parecem prevalecer, se torna necessário se posicionar politicamente para além de suas obras, provavelmente o esforço acaba sendo grande demais para o diretor.

Com isso, mostro mais uma vez o diálogo explícito entre anime e política, e como essa relação está muito forte em 2013.

3) Shingeki no Kyojin

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Assim, chego a Shingeki no Kyojin. Seria o “boom” do mangá e o sucesso do anime justo em 2013 uma coincidência? Acho que não, mas não por uma força política misteriosa operando uma conspiração, acredito apenas que o sucesso da obra seja produto desse momento político específico, de um chamado inconsciente dos jovens para alguns valores da direita, isso sim conscientemente produzido pelos políticos, mas estes também produtos de seu tempo, posteriores a geração que vivenciou o pior da guerra e pós-guerra. Não creio que a obra tenha sido escrita especificamente para manipular as mentes por meio das alegorias que falei no post passado, ao contrário, creio que o autor seja reflexo desses ideais que o Jimintou propaga faz 50 anos, e ele apenas reproduziu inconscientemente o discurso com o qual sentiu alguma afinidade. No momento em que essas ideias ganham poder nacionalmente, o manga encontrou um público receptivo e aberto à mensagem ali contida.

Diferente de obras como Gen, ou dos animes Ghibli, que procuram produzir conscientemente um ideal, Shingeki me parece mais como uma simples ferramenta de reprodução de uma mentalidade conservadora.  Mas em um momento de predominância da direita no poder, aqueles sofrem ataques, enquanto este… bom, se existe influência política ou não, a meu ver favorece a disseminação de uma mentalidade que será fundamental caso o Jimintou queira modificar a constituição.

5 comentários sobre “Shingeki no Kyojin, Hadashi no Gen e Studio Ghibli – Embate Político na Indústria Cultural

  1. Diego disse:

    Tem sempre alguns aspectos díspares em qualquer obra, já que ela é fruto de subjetividade. Por exemplo, SNK possui um povo que já foi visto desde uma menina que parece indiana, até alemães bem loiros. que não só são diversos como sempre de fora do japão. Se tem sempre nomes ocidentais, e a única personagem japonesa(mestiça) sofreu um atentado na infância por causa de sua “raça”. Mas não duvido que em alguns princípios ele tenha se inspirado e que a reação do público tenha a ver com isso. Faz muito sentido em todo o contexto.

    • eduardompa disse:

      Não sei mais para frente, mas até onde li, os nomes são predominantemente alemães. Não quero dizer com isso que o autor é nazista hahaha, mas ele privilegia um perfil ocidental, e coloca outras raças com exóticas. Veja inclusive como ele coloca os japoneses como uma raça que foi escravizada, perseguida, justamente outro temos dos políticos conservadores.

  2. mv hamm disse:

    Gostei muito dos textos, até desejei que fossem mais longos.
    Na grande parte das vezes quando alguém relaciona anime com política, a análise me parece muito fraca. Mas a tua ficou muito legal, vou até procurar mais textos teus sobre a política japonesa do séc. XX.
    Mas me diga, e pergunto isso sem saber o quanto você gosta de animes e mangás, você conhece algum outro autor ou blogger que relaciona a indústria cultural e a política do japão? ou até mesmo qualquer comentário sobre animes e mangás que vá além de uma crítica simplista, mas que tente tocar em temas além da arte, relacionando com a cultura, se é que isso fez sentido.

    For the record: achei tua página procurando um deck de Anki de SnK, haha.

    • eduardompa disse:

      Então, não sou muito ligado à cena anime/manga, conhecia os sites Maximum Cosmo e Otakismo, que tinham conteúdos ótimos e mais densos, mas creio que ambos não existem mais. O Otakismo está escrevendo no Chuva de Nanquim (http://chuvadenanquim.com.br/otakismo/).

      Infelizmente geralmente quem conhece bem anime/manga não tem o perfil da pessoa que conhece política a fundo e vice-versa, e uma boa comparação exige que a pessoa esteja atualizada em ambos. Não tenho conhecimento dos dois lados para manter artigos com regularidade nesse tema, mas com a recepção boa que tive desses sobre SnK, fiquei com vontade de me aventurar mais na área.

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