O fim da desmistificação do Samurai

Por todos os posts dessa série de desmistificações fica a impressão de que eu tenho um grande interesse no que os samurais fizeram ou deixaram de fazer, foram ou deixaram de ser. Isso foi verdade, não é mais.

Essa implicância com a imagem idealizada do “samurai” surgiu cerca de 7 anos atrás, em uma época em que me interessava especialmente o período do Sengoku, queria saber mais sobre a vida dos grandes unificadores Nobunaga, Hideyoshi e Tokugawa Ieyasu. Analisando a história e o comportamento desses líderes percebi que a idéia de Bushido propagada no ocidente simplesmente não se encaixava com os exemplos fornecidos pela história japonesa. Bom, isso já mostra que não precisa ser gênio para desmistificar o samurai. Com pouca bibliografia, pouco conhecimento e nível mais do que básico de Nihongo já me foi possível duvidar.

Busquei então no comportamento desses líderes aquele bushi idealizado. Nesse campo era até possível encontrar algumas das tais virtudes, mas também não me parecia suficiente para fazer daquilo uma regra. Tentei até estudar o que teria sido um modelo de samurai, Musashi, mas ele, menos do que os outros, não confirmava aquela imagem típica. Mesmo assim a minha jornada para desmistificar continuou. Em larga escala foi infrutífera, em pequena escala gosto de imaginar que um punhado, derrepente uma dezena de pessoas viram o que eu tinha a dizer e se questionaram.

Isso, entrento, perdeu o sentido para mim. Não o fracasso em “converter” aum grande número de pessoas (até porque nunca foi meu objetivo), mas a tentativa de entender o Japão a partir de uma elite que compunha 1% da população. Desisti também de estudar as guerras civis através os grandes generais, os líderes militares, porque eles simplesmente não apresentavam respostas satisfatórias para meus questionamentos (eu nem sabia o que questonava, mas sabia que não encontraria respostas ali). Não me parecia que meia dúzia de individuos pudessem ser tão decisivos para a totalidade daquela população quando ignorado o fato de que “jogavam um jogo” que já existia antes deles e continuaria depois de sua morte, e que dependia em larga escala de como unidades históricas menores (pessoas normais, soldados, unidades de tempo contadas e segundos, horas, dias) .

Também não me agradava como a história se moldava convenientemente para favorecer esses vencedores, traçando um caminho de trás para frente apenas para forçar o encaixe entre um fato histórico posterior como consequência da ação desses indivíduos.

Na época eu não sabia, mas estava tendo questionamentos muito semelhantes àqueles apresentados por Tolstoy no Capítulo I da Parte III do Tomo III de “Guerra e Paz” que são, em resumo, os seguintes:

“Para o estudo das leis da história temos de mudar completamente o objeto de observação, dexiar em paz os reis, os ministros e os generais, e examinar os elementos infinitesimais, homogêneos, que dirigem as massas. Ninguém pode dizer até que ponto é dado ao homem alcançar por esse caminho o entendimento das leis da história; mas é evidente que só por esse caminho se encontra a possibilidade de apreender as leis da história, e nesse caminho a mente humana ainda não aplicou a milionésima parte dos esforços que os historiadores aplicaram na descrição da ação de diversos reis, comandantes militares e ministros, bem como na explanação das próprias ideais acerca de tais ações.”

Sem ter essa idéia tão clara como era para o autor Russo, eu fui aos poucos sendo atraído para a era Meiji, mas incorrendo nos mesmos erros de antes. Quis achar a causa de tudo em Perry, Sakamoto Ryoma e etc. Comecei a me encontrar de verdade no Japão, quando analisamos como a população reagiu à Restauração. Ali a desmistificação era mais interessante, mais humana. Vi o povo japones, sempre considerado trabalhador, ser chamado de preguiçoso, vi os documentos que revelam que os trabalhadores japoneses fugiam das fábricas, gastavam todo salário em bebida. Sem necessariamente levar em conta o que Ryoma, Yamagata, Okubo faziam ou deixavam de fazer, a população tinha sua própria forma de agir. Conhecer o Japão não era necessariamente conhecer os grandes indivíduos, mas sim o seu povo.

É difícil, no entanto, estudar essa imagem abstrata de um povo. Encontrei um meio termo. Não me cabia conhecer só os líderes japoneses ou só a grande massa que compõe o povo, era preciso conhecer o sistema que de alguma forma dita o comportamento de ambos, mais especificamente a política e as leis daquela nação, pois minha formação acadêmica me dá algum arcabouço teórico para fazer tala análise. O jogo político dita a forma de agir dos líderes, o resultado desse jogo condiciona a população à longo prazo, não necessariamente da forma como aqueles líderes pretendiam (ainda que queiram que pensemos que tudo que acontece tinha sido previsto e desejado por eles).

Nesse sentido, foi importante, por exemplo, conhecer o Príncipe Ito Hirobumi, sua atuação política, sua pesquisa na formação da Constituição Meiji, e é importante conhecer a Constituição Meiji, mas também como ela refletia (ou melhor, não refletia) a  realidade da população japonesa, e como ela interagia com a realidade. A compreensão não está na figura estática de uma pessoa em uma época, de um povo em uma era, mas na dinâmica dos líderes, do sistema e do povo numa sucessão de momentos, de épocas. Conhecer MacArthur e a Constituição de 1947, por exemplo, sem conhecer a restauração, sem conhecer a influência da Constituição Meiji e as relações dela com a população me parecia despido de significado.

Esse novo método não me oferece compreensão total de tudo, talvez nem ofereça mais respostas que o antigo. Mas me fez consciente de que meu escopo não é esse, é bem menor. Se não posso compreender o Japão só por seus líderes e não tenho como apreender seu povo na totalidade, meu escopo se tornou menor, conhecer apenas alguns de seus elementos, algumas de suas relações. Nessa dimensão reduzida a influência de uma ou outra pessoa é genuinamente relevante.

Olhando para essa nova maturidade eu vejo a inutilidade da desmistificação dos samurais como desmistificação da sociedade japonesa. O “samurai” é um conceito dinâmico, o samurai de um século não é o mesmo do outro. E mais, o samurai é um indivíduo, coletivista ou não, uma sociedade mesmo que extremamente disciplinada não gera uma repetição de indivíduos indênticos. Mas, além disso, o samurai é uma minúscula engrenagem, é 1% entre 99%, e mesmo que esse 1% controle os demais 99% ainda assim não explica todos os movimentos de todas as engrenagens. Todos esses movimentos não podem ser apreendidos, mas é tolice perder tanto tempo com uma parte tão pequena.

Vjeam bem, não acho inútil estudar os líderes, nem acho inútil desmistificar o samurai, mas passada essa fase, vejo que isso não dá mais conta das explicações que eu busco, explicações desconhecidas para perguntas que ainda não fiz, mas que nunca vou fazer se ficar preso à essa pequena dimensão da história japonesa.

E, no fim das contas, se foi tão óbvio para mim ver que o samurai era mistificado, deveria ser óbvio para qualquer pessoa com um mínimo de senso crítico. Se alguém precisou ler o que eu disse para duvidar, existe grande chance que todos os meus erros na desmistificação se tornem novos “dogmas” para essa pessoa, que precisarão ser desmistificados se ela não tiver capacidade natural para duvidar.

Bushido Desmistificado e (mal) Esquematizado

* Antes da leitura dessa bagunça que chamei de esquematização sugiro a leitura dos posts anteriores sobre o tema:

Samurai Mistificado: Bushido

Samurai Mistificado: De quem é a Culpa?

Como o texto anterior estava truncado e longo muita gente deve ter tido preguiça de ler (justamente o meu público alvo nesse caso, que são os que tem preguiça da leitura). Então segue o “esquema” do que o Bushido é ou não é, ou melhor, do que o Bushido foi historicamente e de onde a cultura enlatada tirou as bases para criar esse bushido idealizado ocidental típico de “Último Samurai”:

– O que é: um conjunto de princípios éticos não sistematizados, transmitidos de forma consuetudinária, idealizados a partir do século XVII para adaptar a classe guerreira ao modelo burocrático do bakufu Tokugawa. Alternativamente existe o Bushido criado no século XX por pensadores cristão como Inazo Nitobe que, absorvendo muito da cultura estrangeira, tentaram resumir sua visão do espírito japonês materializada no dever, e anacronicamente instituindo-o como uma código de conduta do guerreiro. Essa segunda versão é a que acabou disseminada no exterior;

– Quando surgiu: A expressão surgiu pela primeira vez no Japão entre 1575 e 1586 no manual de guerra Kouyougunkan de Kousaka Masanobu, general do clã Takeda, mas foi disseminada no período Edo, em sentido diverso;

– Objetivo: o Bushido não foi pensado para ter qualquer utilidade no combate ou na vida do samurai como geurreiro, mas sim para criar uma moralidade baseada na lealdade como garantia a burocratização do shogunato Tokugawa. Não tinha foco no crescimento no indivíduo mas no cumprimento de sua função perante a sociedade;

– Base Principiológica: lealdade, piedade filial, benevolência, misericórida e justiça costumam ser indicados como algumas das idéias retiradas do livro confucionista de Mêncio para criar o conjunto amorfo de regras (e, portanto, não são 6 ou 7 virtudes do samurai ou algo que o valha). Não por coincidencia, Mêncio era muito respeitado como pensador das bases da manutenção da estrutura do nacionalismo nos moldes que posteriormente foram adotados pelo Japão no final do século XIX;

Podemos dizer que esse é o macro-cosmo do Bushido, que tem suas origens no confucionismo, a sua perspectiva geral que de alguma forma foi internalizada naturalmente durante o período Edo. Não foi, entretanto, essa a versão que prevaleceu no século XX. Em uma época em que estereótipos e sistemas são mais atrativos do que um conjunto pouco definido de regras, enfim, um fenômeno social confuso, prevaleceram algumas visões extremamente individuais mas sistematizadas do Bushido. Nesse sentido temos aquele criado por Yamamoto Tsunetomo no Hagakure, com maior influência budista , que apresenta a visão idealizada da conduta do samurai como indivíduo sempre disposto a morrer, e o Bushido cristão de Nitobe que, buscando um modelo do espírito japonês desenvolveu princípios universais que definiriam tal espirito.

Contribuiu para a prevalência dessas versões o fato de que Nitobe publicou suas idéias nos Estados Unidos, bem como o fato de que o Hagakure, por apresentar uma visão bastante romântica do samurai ter tido grande aceitação no ocidente.

A Wikipédia é um site problemático, é  fonte razoável para consulta de fato indiscutível, uma data, um nome, e é bom ponto de partida para alguns questionamentos, mas em matéria de interpretacao e opinião é péssima. A Wikipédia em português costuma ser pobre de informações relevantes, e em geral é uma tradução ruim do artigo em inglês. Os artigos em Inglês são longos e tem muita besteira. Em matéria de Japão, a wikipedia em português sofre de uma interferência das ideais do Instituto Niten e seu fundador, que disseminou por aqui o “samurai corporativo” e o bushido do Hagakure e aproveitou para encantar os leigos deslumbrados, é daí que vem muita informação errada sobre samurais e bushido.

Voltando ao bushido, lembro-me que meus questionamentos vieram com as obras de John Whitney Hall, mas, para mostrar que não precisa ir muito longe para achar informação, muita coisa desse post vem da wikipedia japonesa, que, apesar de sofrer de todos os males da wikipedia, costuma ser mais rica no que interessa em uma enciclopédia: nomes e data.

Samurai Mistificado: Bushido?

 

Indo diretamente ao assunto, em continuação ao post anterior, vou abordar o tema mais representativo da mistificação dos samurais: o Bushido (ou Caminho do Guerreiro, Código Samurai e todas as terminologias e traduções por aí)

É tão evidente a impropriedade com a qual o tema é tratado que vou manter o texto o menos técnico possível, vou apelar para a lógica para mostrar que nesse caso não é preciso nenhum conhecimento acadêmico muito grande, só alguma noção da história japonesa, para questionar a figura do Código do Samurai.

Pois bem, em geral o Bushido é apresentado como um conjunto de regras seguidas pela casta samurai, desenvolvido desde o século XII e amplamente praticado sem muitas diferenças entre clãs. É quase sempre resumido em 7 virtudes (Justiça, Coragem, Compaixão, Polidez, Sinceridade, Honra e Lealdade) e tem entre seus principais representantes Miyamoto Musashi e Yamamoto Tsunetomo com o Hagakure.

Vamos às contradições. O Japão é um país de unificação precária e tardia, que data do século XVII. Claro, houve antes disso alguns períodos de algum nível de unificação administrativa, mas nada muito relevante. Inclusive por força da topografia montanhosa do país o isolamento é quase inerente à algumas provincias. Prova disso é a existência de dezenas de dialetos em uma ilha de proporções diminutas. Ora, se nem o idioma conseguiu ser 100% padronizado, seria possível que uma lei não escrita conseguisse o nível de internalização pretendido por alguns?

Me parece que não, de tal sorte que a própria expressão Bushido foi cunhada já na era moderna, século XVII ou XVIII. A semelhança de comportamento e idéias que constam em registros mais antigos é muito provavelmente fruto dos preceitos Budistas, Confucionistas, e Xintoístas, estes sim difundidos pelo território, que, “coincidentemente” pregam a obediência, polidez, compaixão. Entretanto, muitos desses preceitos tem a prática restrita a determinadas relações hierárquicas, logo, nada de imaginar que essa deveria ser a postura do samurai, ou de qualquer japonês, perante todas as classes sociais.

A perpectiva do bushido que temos hoje é, por incrível que pareça,uma perspectiva cristã, que foi difundida no século XX por teóricos Católicos como Inazo Nitobe e Uchimura Kanzou, ou seja, nada tem de tradicional, não tem nem relação com o Bushido burocrático dos dois séculos anteirores.

Ainda na questão da “ampla aplicação do Bushido”, outra questão a ser levantada é o fato de que seguir tais preceitos não era obrigatório. Na verdade as leis em geral obrigavam a observância de certas dessas práticas a funcionários públicos, oficiais da nobreza e etc, mas mesmo assim sem uma sanção definida. Por si só, esse fato põe em dúvida o quanto os preceitos eram seguidos na vida real, e quanto os documentos que chegam até nós eram visões idealizadas do dever ser.

A dúvida parece ser solucionada observando os mais famosos acontecimentos históricos que envolvem os samurais. Indo para o tempo do primeiro Shogun Yoritomo, este mandou matar seu irmão Yoshitsune por, entre outras coisas, temer seu carisma e seu talento militar. Onde está a coragem, honra, justiça, lealdade polidez, sinceridade em mandar matar o irmão que o ajudou a tomar o poder. E essa lógica prossegue, Shoguns esbajando luxo, imersos na luxúria e na riqueza são eventualmente destituídos por Daimyos “fiéis”.

Nobunaga foi morto pelo seu mais fiel aliado. Hideyoshi foi traído postumamente por Tokugawa, que usurpou o poder de seu filho. Os três usaram os missionários cristãos com falsas promessas, apenas para obter armas de fogo.

E os ninjas, o que falar dessas figuras que são ainda mais mistificadas que os samurais? Não eram o assassinos misteriosos retratados pelo cultura popular, mas espiões, muitas vezes samurais empobrecidos fazendo o trabalho sujo dos mais poderosos. E quanto às guerras em torno da restauração Meiji, as traições dentro do exército do shogun em Toba-Fushimi?

A história revela que o Japão foi construído, como qualquer outra nação, em torno do oposto dos tais preceitos do Bushido. Pode-se alegar que é no pequeno samurai, e não nos poderosos que o tal Caminho do Guerreiro se revela, mas como ter certeza se os relatos são reticentes, e se a “grande história” mostra que prevalece outro comportamento? É importante lembrar que o próprio conceito de samurai muda ao longo dos séculos. O samurai do século XII não é o mesmo guerreiro político do século XVI, que não é o mesmo burocrata do século XVIII. Falar “o bushido” ou “o samurai” é algo bastante impróprio. Existiam regras de conduta? Sim, mas variavam de lugar para lugar, e não representavam uma lei cogente. Existiram samurais que seguiram essas regras? Sim, mas quais samurais, de que época?

O efetivo uso da expressão Bushido, e alguma sistematização precária vem com o Shogunato Tokugawa, nos anos 1600, 1700, 1800 e vêem para domesticar uma classe acostumada à guerras, acostumada a traições. O Período é inclusive um período de paz. Aqui se percebe a maior incoerência, fala-se do Bushido como Código de Conduta do Guerreiro, mas, se existiu um Bushido mais ou menos sistematizado, existiu numa época em que o Samurai era mais burocrata do que soldado. Usamos Musashi como exemplo do Bushido (posterior à ele), mas nos baseamos em um romance do século XX, em pleno momento de mistificação dentro do Japão para desenvolvimento de sentimentos nacionalistas. O Musashi das lendas é exemplo do Bushido mas não o cumpre, adota artimanhas (estratégia?) e métodos pouco convencionais que podem muito bem ser interpretados como contrários às sete virtudes.

E o que falar de de Tsunetomo e do Hagakure. “Sistematizou” a versão mais famosa do Bushido, mas, quem é ele? Um velho domesticado e idealista que supostamente não pode se suicidar depois da morte de seu senhor e em idade avançada mostrou o que achava ser o Bushido. Dentre as pérolas, fingir que vai conciliar dois adversários e matar ambos (cadê a coragem, honestidade e etc.), ter relações sexuais com homens mais velhos para o amadurecimento, ou que tal comer bosta de cavalo malhado para se curar de gripe?

Enfim, uma grande mistura de informações de épocas diferentes, questões particulares transformadas em regras de conduta de toda uma classe, vistas grossas para tudo que contraria essa idealização. Não são precisas muitas fontes para ver que tem algo errado na visão do samurai e do Bushido que chegou até nós.