Tokyo Sonata – Mais uma recomendação de filme sobre a crise das relações sociais japonesas

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Algumas semanas atrás postei algumas recomendações de filmes japoneses, todos com tons socialmente críticos (link aqui). Hoje apresento um filme que reúne muitas daquelas temáticas, mas em tom mais sóbrio que Kazoku Gemu ou Taiyo wo Nusunda Otoko, mostra de forma quase cronológica o processo de colapso de praticamente todas as relações sociais que compõem a vida dos japoneses.

Tokyo Sonata é um filme sobre a típica família de classe média japonesa. O salary-man chefe da família Sasaki, a esposa dona de casa, um filho mais velho que precisa definir seu futuro e o clássico caso do filho mais novo que precisa avançar para um bom colégio de ensino médio. Nesse ponto estrutural, nada muito diferente de Kazoku Gêmu.

Os problemas familiares também são parecidos. Distanciamento entre marido e mulher, entre pais e filhos, problemas na escola, incertezas profissionais e existenciais. A diferença é que Kazoku Gemu mostra a transformação relativamente positiva com a inserção de um elemento estranho no seio familiar, acaba retratando uma família estável em sua mediocridade. Tokyo Sonata, ao contrário, apresenta o total colapso de todas as relações sociais e hierárquicas em que os personagens se inserem no âmbito da família, escola, mercado e sociedade, uma crítica a três gerações japonesas, retrato das desilusões de cada uma dessas gerações.

Essa desestruturação se inicia com a demissão do pai de família, Sasaki, fruto da geração que viu o pleno emprego no Japão, empregados vitalícios na própria iniciativa privada que sem qualquer habilidade especial usufruíam da estabilidade econômica japonesa. Com a crise econômica de 20 anos, ele acaba sendo substituído por trabalhadores chineses que realizam as mesmas funções por 1/3 do salário. Claro que o superior não expõe a situação dessa forma, apenas diz que se ele não pode contribuir para o crescimento da empresa, precisa sair. Aí temos a primeira quebra hierárquica e social, a quebra do contrato não escrito de vitaliciedade, perda da relação de confiança hierárquica dentro da empresa. E com isso temos um indivíduo lançado ao mercado em seus quase 50 anos, um gerente sem habilidades e sem capacidade de lidar com o mercado de trabalho.

Aqui também surge a figura mais interessante que vi nesses filmes críticos da sociedade japonesa, que é o desempregado profissional. O personagem principal, na típica demonstração de falso orgulho, de tatemae japonês, não tem coragem de contar à esposa que perdeu o emprego. Continua saindo como se fosse trabalhar, mas passa o dia fora, frequenta agências de emprego e se alimenta de comida distribuída para moradores de rua e outros desempregados. Reencontra então um amigo, que aparenta ser muito bem sucedido, mas que também é um desempregado. O sujeito domina todas as técnicas para disfarçar a sua real situação. O celular programado para tocar periodicamente, falsas conversas no telefone, conhece os melhores locais para se passar o tempo lendo sem ser importunado, e (pensa que) engana magistralmente a esposa apresentando Sasaki como colega de trabalho.

A segunda quebra é a familiar, de autoridade e de afinidade. Irritadiço, se desentende com a esposa e filhos e perde sua autoridade.  O filho mais velho, de uma geração idealista mas sem grandes oportunidades, decide se alistar no exército americano sob o pretexto de proteger o Japão, contra a vontade dos pais. O filho mais novo passa a aprender piano, também contra a vontade do pai.

A propósito, a vontade de aprender piano é fruta do colapso da relação com a escola, representada pela relação entre o professor desinteressado , e o aluno que decide não ceder à hierarquia avessa aos questionamentos. Após ser injustamente acusado pelo professor, Kenji Sasaki desafia e quebra a autoridade do mesmo sobre a turma. Surge um abismo entre os dois, e o garoto descobre no talento musical um escape, a possibilidade de ingressar em um conservatório. Seria, na minha opinião a representação de uma terceira geração no filme, a geração que não é idealista e não é acomodada, apenas quer encontrar o seu lugar no mundo.

Ao longo desse colapso de todas as instâncias de relações sociais, veremos ainda o ladrão, excluído da sociedade, com quem a esposa do personagem principal acaba se envolvendo, afinal, são dois indivíduos alheios ao ambiente em que vivem, duas pessoas excluídas da própria existência, aquele por não pertencer à sociedade na qual se insere, ela por não pertencer à família. Aqui a relação entre marido e esposa sofre também a ruptura pelo adultério.

Nessa linha vemos passo a passo a desintegração completa de uma família.  Entre outras coisas, o filme é uma crítica pesada ao tatemae, mostra o potencial destruidor do interior do ser humano pela obssessiva manutenção das aparências . Mesmo assim, restará ainda uma mensagem de esperança ao final, esperança essa que passa necessariamente pela transformação pessoal de cada um, e mostra que a felicidade e a realização depende da fuga dos padrões sociais impostos pela sociedade japonesa.

Recomendação Aleatória de 4 Filmes Japoneses

Por motivos que ficarão claros em breve, estou evitando realizar comentários políticos no blog. Em substituição a esse tema dominante da página, vamos migrar um pouco ao entretenimento.

Nunca fiz um Top 5 ou Top 10 de nada por aqui, e não será dessa vez que farei, em compensação decidi recomendar 4 aleatoriamente 4 filmes japoneses com a única regra de não envolver samurais como tema principal. Esses filmes  não são nada obscuros mas que também não são muito mainstream (apesar de que todos são bastante populares, acredito). Não é uma classificação dos melhores que já vi, nem que são os melhores representantes de seus estilos ou diretores. É uma lista totalmente espontânea e os comentários são totalmente amadores. Vamos à lista.

1) 太陽を盗んだ男 (Tayo o nusunda otoko – The Man Who Stole the Sun) – 1979

Uma capa muito mais louca que o filme

Uma capa muito mais louca que o filme

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Uma capa mais fiel ao espírito policial do filme

É um dos filmes japoneses mais peculiares que já vi. Lida diretamente com temas bastante delicados e ainda por cima de forma satírica. O primeiro e mais evidente tabu com o qual trabalha é a questão da bomba atômica. Tendo em vista a trágica histórica história do Japão os filmes que lidam com essa temática costuma ser extremamente sérios, pesados e sombrios. Aqui, no entanto, o tema é tratado de forma meio cômica, com um professor de química de ensino fundamental que constrói uma bomba atômica caseira para ameaçar o governo e obter tudo que quiser, ainda que o personagem principal não faça ideia do que quer, e acabe pedindo coisas bastante banais, totalmente compatível com essa visão banalizante do terrorismo nuclear. O fato de ser satírico e até cômico não significa que no fundo não predomine um tom sério, o que torna especialmente difícil de classificá-lo.

O filme já é corajoso em abordar a questão nuclear no Japão, e mais, fala de terrorismo nuclear, mas antes mesmo disso apresenta um cenário que sequer costuma ser imaginado na ficção japonesa, que é o terrorismo contra o imperador. No caso, se trata de uma cena inicial em que um ônibus escolar é sequestrado e utilizado para uma tentativa de invasão do palácio imperial, com direito a metralhadoras, granadas, atiradores de elite…

Por sinal, o filme ainda tem umas boas perseguições de carro, bem ao estilo anos 70, 80. É um filme acessível, no sentido de ser divertido e ainda proporcionar a reflexão sobre temas polêmicos, ainda que até o momento eu não tenha realmente entendido qual o tipo de reação ou reflexão queria realmente provocar. De qualquer forma, gosto desse tipo de filme conflituoso com a visão dos estrangeiros com relação ao Japão, fugindo totalmente da sociedade harmoniosa e disciplinada e mostrando o caos interno dos indivíduos.

2 – 赤ひげ Akahige

Toshiro Mifune com uma barba épica

Toshiro Mifune com uma barba épica

Um dos meus preferidos do Kurosawa ( ainda que diga isso de todos os filmes dele). A temática social é bastante destacada. Assisti ele na época em que o programa “Mais Médicos” estava no auge da polêmica, e me pareceu apropriado para refletir sobre aquele momento, pois a função social do médico é o um dos primeiros temas a ser trabalhado na obra, especialmente a questão da postura do médico diante do paciente, e da importância da existência do médico independente das condições de infra-estrutura. Na clínica onde se passa o filme faltam remédios, faltam condições apropriadas, mas é a dedicação dos médicos, em especial do próprio Akahige (último papel do Mifune trabalhando com o Kurosawa) por meio da compaixão com os pacientes como indivíduos e não como clientes que comove que assiste.

O filme gira em torno em um primeiro momento sobre conflito entre o Dr. Niide “Akahige”, um médico bastante rigoroso atuando em uma clínica no interior do Japão no período Tokugawa e Yasumoto, um recém formado arrogante e egoísta que almeja se tornar médico pessoal do Shogun, despreza a clínica, a zona rural, as condições de trabalho, se acha superior por ter estudado medicina holandesa, ao ponto de acreditar que Akahige quer apenas roubar suas anotações. É a partir do contato direto com pacientes, e especialmente com suas histórias de vida, que ele toma conhecimento de seu papel para atenuar o sofrimento de cada indivíduo.

E ainda temos a chance de rever Toshiro Mifune desferindo umas bordoadas em uma leva adversários.

3) おくりびと (Okuribito) – 2008

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Ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2009, conta a história de um jovem músico que retorna a sua cidade natal no interior do Japão quando a orquestra em que toca é encerrada. Reconhecendo a própria falta de talento, vende o violoncelo e decide buscar um novo emprego. Acaba contratado por uma empresa que realiza ritos funerários (sem sequer saber o que a empresa faz). O filme trata com enorme sensibilidade temas como família, preconceito e, obviamente, morte. As relações retratadas são muito variadas: a vida do casal principal e o choque da mudança para o interior, que leva por parte do personagem principal, talvez metaforicamente, à um conhecimento muito mais profundo do  de seu próprio eu-interior; relações conflituosas entre pais e filhos, redenção familiar no momento da morte. No campo do preconceito, vemos o personagem principal ser evitado por amigos e ser tratado como inferior por conta da profissão, provavelmente preconceito remanescente da divisão social japonesa que colocava aqueles que lidavam com cadáveres como os mais baixos na escala social. Os funerais parecem funcionar como momentos de transformação e transição, passagens, e não como um fim. Em cada uma das cerimônias vemos a aceitação de diferenças, a conciliação entre partes, a superação de preconceitos. Mas me parece que paira a crítica de que os japoneses são muito distantes das peesoas que deveriam ser próximas durante a vida, exageram no tatemae, e apenas no momento morte das pessoas queridas amargam o remorso por esse comportamento

Enfim, um filme muito bonito, bem dirigido, bem executado.

4) 家族ゲーム (Kazoku Gêmu) – 1983

kazoku

Esse é um filme bem bizarro, seja na caracterização dos personagens, seja na direção. Retrata uma família japonesa estereotipada, a mãe dona de casa e o pai salaryman que vivem exclusivamente para ver os filhos entrarem em uma boa escola.  Um dos filhos é relativamente bem sucedido, tendo ingressado em uma ótima escola de ensino médio, o outro sofre com a pressão desse pré-vestibular característico do Japão (além de já ser um dos piores alunos da classe). Nesse ambiente estereotipado surge um estranhíssimo professor particular (interpretado pelo Yuusaku Matsuda, eterno Juubei Yagyu de Onimusha 2, para o pessoal da minha geração) contratado para melhorar as notas do rapaz. O filme passa um 気持ち悪い pela falta de naturalidade, para não dizer anormalidade dos personagens principais, que apresentam comportamento estranhos e relações disfuncionais. O professor particular é em alguns momentos desagradável (dando beijos no aluno, sussurrando de forma as vezes carinhosa, as vezes ameaçadora), em outros momentos agressivo. Seu aluno, Shigeyuki, é extretamente mimado, abusivo com a mãe, e na verdade parece meio abobado. Como na maioria dos filmes, a escola, longe de ser retratada como aquele ambiente idealizado que todos adoram pintar quando falam de educação no Japão, é outro ambiente disfuncional, com bullying, professores descontrolados e alunos indisciplinados. É claramente um filme que faz a crítica do impacto do crescimento econômico sobre a sociedade, que não acompanha a velocidade das mudanças, deslocando indivíduos e suas expectativas.