Nesse texto me aventuro em um tema do qual não tenho base teórica alguma, então estou sujeito a cometer muitos erros, mesmo assim, vale a tentativa.
Em uma sociedade como a japonesa, tão desigual na questão de gênero, tão preconceituosa com as mulheres, é de se esperar que a indústria cultural reproduza e reforce tal desigualdade e preconceito. É o que acontece em muitos seriados, filmes, manga e anime. No caso desses últimos dois me parece até bastante grave, não apenas na óbvia questão de objetificação sexual das mulheres, mas na própria posição dentro das tramas em que são colocadas, camuflando o preconceito com personagens marcantes mas sem uma posição de poder (por exemplo, personagens femininas fortes mas também insanas, abobadas).
Então penso em uma série como Gundam (1979), uma época que talvez marca um daqueles ápices da desigualdade de gênero, uma série que, diga-se de passagem, está longe do retrato e posicionamento ideal das mulheres, mas ainda assim anos luz a frente da sociedade japonesa de ontem e de hoje.
Onde vejo os méritos da série no tratamento da questão de gênero? Em primeiro lugar, na questão de erotização, não há fan-services (nem sei se existia na época) e não há taradismo dos personagens, pelo contrário, existe uma enorme admiração dos personagens masculinos por personagens como a Matilda, sem nenhuma erotização.
Em segundo lugar vejo um empoderamento feminino que vem da própria concepção de igualdade, concepção esta tão óbvia que não precisa ser enfrentada de forma explícita na série. Explicando melhor, não existe estranhamento dos personagens masculinos diante de personagens femininas exercendo poder e participando das decisões, que as mulheres exerçam tais papeis é absolutamente natural na série. Ou seja, há empoderamento como condição óbvia na existência dos personagens. Esse tipo de “crítica” é ao mesmo tempo muito sútil, mas também muito mais inteligente do que ter as mulheres questionadas e depois dando a volta por cima, pois mostra um estágio mais avançado de humanidade, o estágio em que as mulheres sequer precisam passar por essas provações.
Aqui temos vários exemplos. Um dos mais óbvios é da própria Matilda, não há qualquer questionamento ou surpresa sobre sua posição de comando acima dos personagens masculinos, pelo contrário, além de admiração existe inclusive uma sensação de dependência dela que se torna uma guardiã da White Base.
Outro exemplo que acho bem interessante é da Mirai, que assume comando da White Base em um momento da fragilidade psicológica do comandante homem. As personagens que passam a comandar a nave, as personagens que mais resistem ao stress são a própria Mirai e também a Sayla. Sim, a Mirai tem seus momentos de fraqueza e dúvida, mas não surge nenhum personagem masculino salvador para colocá-la no lugar, para dar o elemento racional e de comando tipicamente atribuído aos homens, não é o manual elaborado pelo Bright que faz a diferença, mas o suporte da Matilda e Sayla que tornam ela uma comandante. E novamente me surpreendo que não é feito um único comentário questionando o comando de uma mulher. Se alguma crítica é feita, é sobre sua indecisão.
Há ainda outros exemplos, como a relação entre Ramba Ral e Hamon. Não importa o quanto o Ramba Ral seja “foda”, o respeito que ele mostra diante da Hamon e o próprio diálogo entre os dois passa uma relação de igualdade muito forte.
Inclusive, essas mulheres lutam e morrem sem drama, sem ficar se apaixonando e chorando por algum personagem principal, não há entre elas tsundere, personagens fortes por fora e ridiculamente fracas por dentro. Existem na série vários elementos diferentes, submissos? Existem, a questão é pensar se são ao menos bem balanceados com com esses exemplos muito mais autênticos. Daí o “?” no título do post. Entre posturas machistas e e personagens femininas relevantes, e levando em consideração a época do anime, será que cumpre um papel positivo ou negativo no retrato de personagens femininas?
Me parece um retrato muito diferente de outras séries, como Saint Seiya por exemplo, em que as mulheres ou precisam ser protegidas o tempo todo, ou são falsamente fortes. Por exemplo, a Shina, com toda sua revolta, mas no fundo tem uma grande fraqueza é apaixonada pelo Seiya, ou seja, ela não existe por si mesma como personagem, está ali para elevar o Seiya como personagem principal. Semelhante é o papel da Marin, toda cheia de autoridade e poder, mas no fundo não é nada perto dos cavaleiros de bronze, é apenas irmã do Seiya. A Hilda, que poderia ser uma grande vilã, é apenas uma figura controlada por uma força masculina.
Enfim, Gundam (1979) quebra barreiras e estereótipos, não existe o tipo masculino forte e o tipo feminino forte, homens e mulheres são parecidos em qualidades e defeitos. Infelizmente a série não manteve esse padrão nos animes mais recentes
Creio que minha visão pode ser muito superficial ou otimista, e a contribuição de gente mais entendida seja na questão de gênero, seja nos próprios personagens da séries, pode ajudar a reforçar ou ou enfraquecer os pontos que levantei aqui. Mesmo assim, acho importante lançar a questão de gênero com seriedade, não ficando restrito aos questionamentos de ordem física (coisas do tipo: porque a armadura e roupas das mulheres são “sexualizadas” [nem sei se a expressão usada designa o que quero designar, mas dá para entender]).
Ps. Peço que me corrijam nas terminologias técnicas, nos erros com relação a trama, enfim, aceito contribuições sem qualquer constrangimento.