Yasukuni Jinja
Direito e Direitos no Japão
Com esse post inicio uma nova série de artigos no blog, dessa vez tratando dos direitos constitucionalmente garantidos no Japão, e como eles tem sido aplicados e protegidos pelas autoridades e pelo judiciário.
Começo, portanto, por um tema que no Japão não é tão polêmico, a relação entre o Estado e a Religião. Instituições religiosas estão menos presente na vida das pessoas em dimensão bem menor por aqui, a influência da religião não se compara ao que vemos no Brasil.
Ainda assim, o debate existe, e os limites só foram definidos gradualmente pelo judiciário.
Os próximos temas serão: Liberdade de Pensamento e Expressão, Burakumin, Direito dos Ainu, e Direito dos Estrangeiros.
As análises são bastante simples, a ideia é dar uma visão geral do tema. Como tudo no blog, conforme o nível de acesso e interesse, eu posso expandir os posts.
Separação entre Estado e Religião nas Constituições do Japão
A primeira constituição do Japão, da Era Meiji, já previa a liberdade religiosa, mas estabelecia limites de ordem pública, além de prever o shintoísmo como religião do Estado.
Já a Constituição atual prevê a liberdade religiosa e a separação entre Estado e Igreja. Constitucionalmente as instituições religiosas não podem receber qualquer tipo de tratamento privilegiado, não podem exercer autoridade política, e o Estado deve se abster de promover a educação religiosa ou qualquer atividade relacionada a qualquer religião.
A grande diferença da separação entre Estado e Religião no Japão e em países como o Brasil ou Estados Unidos, é que nestes essa desvinculação tem o objetivo de evitar que a Religião use e influencie o Estado, e no Japão o objetivo é evitar o uso por parte do Estado das instituições religiosas para controlar a população.
Três estudos de caso
Indo direto ao ponto da interpretação do judiciário sobre o tema, os seguintes casos são os mais emblemáticos sobre o tema. Escolhi eles baseados na importância dada pelos manuais de direito constitucional, por serem casos interessantes e por mostrarem a mudança gradual de interpretação em 3 décadas diferentes.
1. Caso Tsujichinsai – cerimônia shintoísta paga pelo governo (1977)
- Fatos: nesse caso o governo municipal de cidade de Tsu, província de Mie, patrocinou uma cerimônia shintoísta para o início da construção de um ginásio de esportes.
- Pedido: Um vereador entrou com uma ação sob o fundamento de que a contratação desse tipo de cerimônio viola o parágrafo 3º da Constituição, que proíbe atividades religiosas por parte do Estado
- Decisão: O caso chegou até a Suprema Corte e foi julgado improcedente, com base no entendimento de que a Constituição não proíbe completamente o Estado de ter relações com instituições religiosas. O que realmente importa é a intenção e o resultado dessa interação. A Suprema Corte entendeu que esse tipo de cerimônia teve o caráter religioso enfraquecido com o tempo, sendo visto como uma tradição quase secular pela maioria, dessa forma, não havia intenção ou consciência religiosa por parte do poder público, bem como estava ausente qualquer caráter proselitista.
2. Caso do ritual shintoísta de consagração contra vontade da viúva (1988)
- Background: Até o final da Segunda Guerra, militares mortos em serviço eram “consagrados” (um ritual shintoísta pelo qual a “alma” do morto passa a ser celebrado em determinado santuário) em Yasukuni. Depois da guerra, os membros das Forças de Autodefesa mortos em serviço passaram a ser consagrados no santuário locais.
- Fatos: Um membro das Forças de Autodefesa faleceu em um acidente de trânsito em 1968, o funeral seguiu o ritual budista, mas a esposa do falecido, cristã, enterrou os restos mortais em um cemitério católico. Uma ONG de apoio às Forças de Autodefesa, de forma costumeira, pediu permissão às Forças para realizar uma “consagração” coletiva de 27 falecidos em um santuário em Yamaguchi. Sendo cristã, a viúva se opôs, mas o departamento de relações públicos autorizou, a despeito de três pedidos formais pedindo a exclusão do marido.
- Pedido: Com base no princípio da liberdade de crença e separação entre Estado e Religião, a viúva ingressou com ação contra a Associação regional e contra o departamento regional das Forças de Autodefesa, pedindo o cancelamento do procedimento e indenização por danos morais
- Decisão: A autora ganhou em primeira e segunda instância, mas perdeu na Suprema Corte pelos seguintes argumentos: 1) Com relação à separação entre Estado e Religião, o departamento das Forças de Autodefesa teve papel meramente burocrático e procedimental, sem conotação religiosa; 2) Liberdade de crença é um direito que diz respeito ao indivíduo e qualquer violação viria de alguma coerção para que se acredite ou deixe de acreditar em algo, o que não se verifica no caso. Além disso, ao que tudo indica o marido era ateu, então não há realmente relação com a autora ou nexo causal com qualquer dano sofrido.
- Voto divergente: Houve um voto de divergente (discordou na totalidade da maioria) e 3 opiniões no sentido de que as Forças de Autodefesa agiram além de sua autoridade.
3. Caso Tamagushi (1997)
- Background: Se trata de uma ação que questionou a oferenda “tamagushi” feita pelo governador da Província de Ehime ao santuário Yasukuni, que homenageia os mortos de guerra do Japão. Foi a primeira decisão da Suprema Corte que reconheceu inconstitucionalidade em um caso questionando a separação entre Estado e Igreja.
- Fatos: Nesse caso, os fatos são simples, o governador de Ehime utilizou recursos públicos para realizar uma oferenda a um Santuário Shintoísta.
- Pedido: A ação foi proposta por um monge budista da seita Jodo Shinshu com base na violação dos art. 20, §3 e 89 da Constituição do Japão, bem como com base na Lei de Autonomia Local, pleitando uma indenização por danos morais (lembrando que no Japão não controle de constitucionalidade da lei em tese, apenas incidental).
- Decisão: A Suprema Corte recusou o argumento de que se tratou de uma mera cortesia social, sem conotação religiosa. Para o tribunal foi um ato que violou a proibição de atividade religiosa por parte do Estado, com base no critério de objetivo e efeito do ato, bem como constituiu violação do art.89 da Constiutição, que proíbe o uso de recursos públicos em benefício de instituições religiosas. Ainda que o valor fosse pequeno (45 mil ienes), a corte considerou que o montante não deve influenciar a análise. Além disso, por mais que o ato tenha sido mera formalidade, objetivamente foi uma doação a Yasukuni, um santuário que carrega um significado social e religioso muito forte. Esse tipo de doação pode passar a impressão de endosso daquela religião específica e portanto atrair a atenção da população. Ainda que seja difícil a separação completa entre Estado e Igreja, dentro do contexto cultural e social do Japão o ato foi visto como ultrapassando os limites toleráveis. 10 Ministros seguiram o relator,3 emitiram opiniões extras e 1 ministro divergiu, alegando que o ato não ultrapassou os limites constitucionais e afirmando que Yasukuni é especial por honra os mortos na guerra.